20 outubro 2009

Suicídio

É impressionante como, vez ou outra, somos surpreendidos por fatos que marcam nossa vida de maneira estranha. O que vou relatar a seguir talvez tenha sido a maior das singularidades que minha mente tem o poder de recordar. Minha frieza, antes incontestável, mostrou-se impotente naqueles poucos minutos, e nunca uma pessoa mexeu tanto comigo. Não posso dizer se por sua ingenuidade ou sabedoria. Crer em tal fato talvez passe a servir de alento para muito dos leitores, mas creio eu que nem todos terão a mesma sorte.
Estava decidida a pôr um fim naquilo tudo, já havia dias que pensava sobre, mas havia tomado uma decisão. Seria naquele dia. Rapidamente, cheguei a casa dela, entrei sem bater, queria fazer uma surpresa. As coisas estavam jogadas no chão. Apanhei uma garrafa de whisky quase vazia. Parecia fazer semanas que ela não saía de casa, nem ao menos de sua cama, exceto quando recebia pizzas que pedia pelo telefone. Este havia sido destruído, provavelmente com um arremesso enfurecido na parede. As caixas de pizza ainda se encontravam ao chão com restos cobertos de formigas. Levei a garrafa até a boca, estava insuportavelmente quente, a tal ponto que distorcia minha face para engolir a pequena quantidade despejada. Após experiência não muito agradável com o sabor da bebida, abandonei a garrafa novamente no chão.
Caminhei ao quarto dela lentamente. Empurrei a porta que estava semi-aberta. A pouca luz que iluminava o quarto provinha de um pequeno abajur que se encontrava ao lado da cama. Deparei-me novamente com a desordem aparentada de semanas. O quarto não era demasiado grande, porém o suficiente para uma pessoa sozinha. Havia ainda nele uma porta que dava para um banheiro. Passei ao lado da cama sem que ela despertasse de um sono profundo e desinteressado, certamente acarretado pela grande quantidade de álcool que havia consumido. Como se acompanhasse minha caminhada, o corpo dela se arrepiava a cada passo que eu dava em direção à porta. Em um espetáculo lúgubre seu corpo parecia sentir minha presença e se ouriçava à medida que eu passava ao seu lado, começando pela cabeça que estava virada aos pés da cama, descendo pelo seus braços e tronco, chegando finalmente às suas pernas. Cheguei ao banheiro, mas não entrei, apenas a vista superficial da porta reforço minha idéia sobre os motivos de seu jazer. Havia sobre a pia outra garrafa de whisky, essa pela metade e uma caixa de calmantes. Ao visualizar tal mistura, comecei a duvidar se o sono dela seria mesmo sono, ou se havia chegado atrasada para evitar o pior. Logo restabeleci a razão. Tal infortúnio era improvável.
Voltei-me para o quarto, já havia perdido tempo demais naquela casa, acabaria com tudo logo para que prontamente voltasse à minha vida normal. Caminhei até a cama onde ela se encontrava. Sua roupa descuidada deixava seus seios à mostra, mas acredito que não tinha a companhia de alguém havia dias. Não obstante as condições em que ela provavelmente fora dormir, sua respiração calma e lenta fazia seu sono parecer saudável. Observei seu rosto, agora iluminado pela luz externa que a porta permitiu entrar no quarto. Era uma mulher de rara beleza, os cabelos negros e lisos escorriam pelo seu rosto e se destacavam ao alvor de sua pele , escondiam parcialmente seu nariz fino. A boca bem desenhada quase sem cor não perdia a beleza. Era de fato uma mulher jovem e bela, mal sabia a desgraça que estava prestes a se consumar.
Levantei a mão, iria pronuncia as palavras que a mim eram incumbidas. De súbito ela abriu os olhos e me fitou. Seus olhos azuis eram esfumaçados e penetrantes como os de um felino. Vacilei pela primeira vez. Nunca havia me compadecido de Ninguém, nem de velhos, nem de crianças. Era incompreensível o que fazia que eu parasse meu ato naquele instante. A agonia foi se alastrando e em poucos segundos havia tomado conta de mim. Cambaleei, apoiei-me em uma poltrona postada em frente à cama. Minha respiração ofegante fazia transparecer todo escárnio que sentia por mim mesmo naquele momento.
A mulher arrumou q camiseta que vestia, cobrindo os seios. Esfregou os braços, aquecendo-se do frio que parecia ter sido provocado pela minha presença, levantou-se e foi até o banheiro. Retornou com a garrafa de whisky em uma das mãos, sentou-se na cama com as pernas dobradas e encostou os joelhos um contra o outro. A luz fraca do abajur dava a seu rosto um brilho temeroso. Virou a garrafa demoradamente enquanto eu , atordoada, observava a cena e tentava recobrar-me para que, enfim pudesse fazer o que me cabia. Depois de saciado seu desejo, fechou os olhos novamente em um longo piscar, juntamente com uma profunda respiração. Abriu os olhos tão rápido quanto a primeira vez, fitou-me novamente. Indaguei se ela me via. Por instantes pude acreditar que não, mas o que aconteceu desse momento em diante pôs à prova toda a perfeição que eu depositava em meus crimes.
Um leve movimento em seus lábios revelou um sorriso sarcástico, como poucos que já havia presenciado. Postei-me seriamente, à altura que minha posição exige e encarei-a, fingindo não estar surpresa com tal situação. Sucedendo seu sorriso, ela resolveu estabelecer contato:
—Sabe; tem dias que não acordamos bem—até então podia duvidar que me via—entende?
Tal pergunta colocou um ponto final nas dúvidas que eu insistia em manter sobre a situação. Esclarecida a dúvida, maior ainda foi minha surpresa. Acenei vagarosamente que sim com a cabeça e deixei que ela continuasse. Seu olhar profundo perdeu a noção de espaço assemelhando-se ao de um lunático, olhava para mim como se olhasse para um vasto horizonte que não tem fim.
—São aqueles dias que desejamos que o mundo todo acabe. Simplesmente pelo fato de poder acabar junto com ele. Mas ele nunca acaba.....E o que nós fazemos?
—Acabamos com ele?—perguntei sem me dar conta exatamente do que pretendia com aquela conversa.
Ao ouvir minha resposta ela deu uma longa gargalhada e voltou a levar a garrafa à boca. —Bebemos, é isso que fazemos. Acabar com o mundo é algo grande demais para simples mortais, deixe isso para os deuses e demônios. Nós, por enquanto nos empenhamos em acabar conosco mesmo.
Apontou a garrafa na minha direção em um gesto de saudação, soltou outro sorriso sarcástico, inclinou levemente a cabeça, olhou fixamente para garrafa em suas mãos. Em uma deflagração de ódio e tristeza arremessou a garrafa contra mim. Seus olhos haviam perdido a serenidade. Eram pura fúria e violência. A garrafa chocou-se contra a parede e o pouco líquido que restava produziu uma mancha disforme logo acima da minha cabeça, mas a mim que era o principal alvo, não atingiu. Seu ataque foi sucedido de gritos enraivecidos
—Desgraçada! Onde é que você estava quando eu precisei de você?
—Se era de mim que precisava, estou aqui.¬ —respondi mantendo a calma.
Seu rosto novamente voltou à serenidade que precedia o ataque e seus olhos tornaram a se dispersar no ar. Novamente ela parecia ser uma lunática. Abaixou a cabeça; lágrimas começaram a escorrer lentamente de seus olhos, molhando alguns fios de cabelo que estavam soltos em seu rosto deixando-os grudados em sua face.
—Desculpe, de nada adianta me enfurecer, devia ter aceitado que sou um brinquedo, a seu tempo e gosto.—disse em meio as lamúrias.
Estava criando um vínculo afetivo perigoso com aquela conversa, tinha uma determinada função e precisava cumpri-la de alguma forma, mas em anos talvez tenha sido ela a única que se dispunha a ter uma conversa verdadeira comigo. Pensei em abraçá-la, não sei se por mim ou por ela, mas hesitei o fato de não ter acabado com tudo assim que cheguei já havia ultrapassado os limites que a mim eram concedidos. Ela continuou a falar:
—Você é tão bela quanto eu via em meus sonhos. Diversas vezes eu jurava ter dormido abraçada à você, mas quando eu acordava não sentia sua presença. Acho que você sempre foi pra mim um sonho, toda noite dormia abraçada com um sonho e acordava com a realidade de mais um dia. Talvez seja esse o motivo por que tantas pessoas achem a vida tão injusta, os sonhos são muito melhores, porém eles nunca são alcançados. Mas hoje é meu dia, não é?
—Assim....—levantei e olhei para ela esperando que se atemorizasse diante de minha presença, mas ao invés disso ela sorria como se vivesse uma alegre tarde de verão. Vacilei pela segunda vez, agora minha agonia beirava o desespero. Minha intriga tornou-se insuportável.
—O que há com você menina?
—Desejo.— respondeu prontamente—O que há comigo é desejo. Muita gente até hoje foi possuída por você, muita gente te aceitou, mas poucas te desejaram o quanto eu te desejo agora.—abriu os braços em um movimento de aceitação—Vem!. Nossos destinos estão entrelaçados como uma só coisa.
—Maldita!—sentia raiva das palavras que ela me dirigia. Sentia raiva por saber que eram verdadeiras, e que ela conhecia meus caminhos como eu própria.
—Isso, se enfureça. É tudo que desejo que se enfureça. E que, enfim, entregue-se a mim pelo seu ódio e pelo meu amor, para que assim possamos chegar a um só corpo. Em um só momento transformará o amor em ódio e o ódio em amor, cumprindo assim o destino dos vivos.
—Alegra-se por isso?
—Como já disse, há dias que sonho com você.
—Então assim seja feita sua vontade minha jovem.—ergui pela terceira vez minha mão para tocar-lhe. Desta vez fui interrompida por ela.
—Espere! Vamos brindar, deve ter um pouco de whisky em algum lugar.
Ela correu pela porta e voltou com a garrafa, que parecia ser a mesma que havia abandonado no chão, e dois copos com gelo. Encheu os copos até a me ofereceu. Olhei para o copo e lembrei da experiência que havia tido logo na entrada. Enquanto observava o líquido no meu copo, ela levantou o copo na altura da cabeça e me fiou esperando que eu fizesse a saudação. Declarei com toda ostentação que havia em mim.
—Ao amor!
Ela, a moldura de minha contradição, declarou com a mesma ostentação:
—Ao ódio.—e virou o copo que parecia ser-lhe da mesma pureza da água. Ante tal desafio repeti o ato, que dessa vez foi mais feliz do que minha primeira experiência.
Voltou a me fitar. Seus olhos esfumaçados brilhavam de felicidade, era abstruso imaginar como alguém podia me desejar da forma como ela me desejava, mas, por fim, era chegado o momento de realizar seus desejos.
Parecendo adivinhar meus pensamentos, ela voltou a falar:
—A verdade é que não te desejei sempre. No início um simples abraço de qualquer seria o suficiente, mas as pessoas parecem fugir quando as coisas ficam mais difíceis. Tudo o que precisava era de alguém que me amasse como eu te amo hoje. Enfim, o que consegui foi isso que você vê agora. Nada, a não ser você.
—Tenho certeza que sua família te ama.
—Eu também tenho. Eles só não tentaram demonstrar isso quando eu precisei, agora também não faço questão. Tudo o que preciso é de liberdade e você vai me dar a liberdade necessária.
—O preço que se paga pela liberdade é muito alto.
—A liberdade se tivesse preço certamente não relutaria em comprá-la.
—Sendo assim, desejo sinceramente que possa ser livre.
—É engraçado ver você declarar sinceridade, já que é a única em todo mundo que a sinceridade não precisa ser posta à prova.
Ri do elogio nunca antes recebido de procedência alguma.
Ela abaixou novamente sua cabeça, sentou-se na cama e voltou a chorar.
—Arrependeu-se?
—Jamais, choro porque foi triste minha vida, porque minha solidão me ardeu tristemente enquanto definhava. Toda beleza que possa ser vista no mundo de nada vale se não puder ser compartilhada. Talvez a maior das desventuras seja saber da beleza da vida e guardar tamanha preciosidade para si só. É como guardar ácido no sangue que aos poucos vai corroendo seu corpo e destruindo tudo por dentro.
Suas palavras não pareciam ser de tristeza, nem de arrependimento. Pareciam trazer consigo uma mágoa, por tudo que não pôde fazer pelos outros e tudo que não pôde receber em troca. Fitei-a piedosamente, ela secava as lágrimas que desciam em seu rosto. Olhou friamente para mim, vi novamente seu olhar se transformar. Estavam agora tão cinzentos quanto uma tarde nublada de inverno.
—Sinceramente, a vida não é tão injusta como gostamos de espalhar por aí. Na noite passada desejei que estivesse aqui ao amanhecer e quando acordo me descubro frente a ti, assim me olhando e pronta pra mim. E eu, aqui estou, também pronta pra você. Pode vir eu não tenho mais receios.
Dessa vez decidida, e sem vacilar, declarei?
—Quando o homem se depara com o ceifador, cumpre-se a única certeza e moléstia dos que estão vivos. Da liberdade real nem mesmo a prisão do corpo de carne e osso pode privar a alma. Eis que estou aqui, seu único instrumento de liberdade e com clemência recebo sua alma.—Ela não permitiu que eu tocasse sua cabeça com minha foice, correu em minha direção me abraçou e feneceu em meus braços. Coloquei-a de volta na cama. Seu corpo alvo parecia mais belo agora que perdia a luminosidade da vida.
Sentei-me novamente na poltrona e fiquei contemplando por mais uma hora o corpo da única mulher que amara e literalmente conhecera a Morte.
Seu corpo foi encontrado quatorze dias depois, a causa mortis foi definida como overdose por ingestão de calmantes. Aos parentes e conhecidos, foi declarado que houve suicídio.